Leticia R. Reis, estudante de Divinópolis (MG), criou uma página no Facebook (www.facebook.com/Aerolindas) e Instagram (@aerolindasoficial) dedicada às comissárias de bordo. A Aerolindas, que já tem mais de 9,5 mil seguidores no Facebook e 8,5 mil no Instagram reúne fotos da rotina dos profissionais da aviação, em sua maioria aeromoças de todo o mundo.
A página foi criada como forma de valorização e admiração desses profissionais e se destaca pelas fotos dos bastidores do ambiente de trabalho na aviação. Dentre as imagens, há várias selfies de comissárias de bordo, em sua maioria muito bonitas, o que desperta uma aura de glamour dos anos 60 que ainda envolve o imaginário popular em relação a essa profissão (e muitas vezes esconde o trabalho duro que há por trás dela). Em sua origem, a função de uma aeromoça passava longe de qualquer tipo de luxo e talvez a palavra mais adequada para descrevê-la seja coragem.Tudo começou nos anos 30, com o sonho da enfermeira Ellen Church.
Ellen Church, a aeromoça heroína
Na década de 30, voar era uma experiência desconfortável e temida. Dentro da aeronave, além dos pouquíssimos passageiros, ficavam apenas o piloto e o co piloto. Como não havia serviço de bordo, o co piloto tinha que abandonar o seu posto para entregar caixas com lanches, acalmar os passageiros que estavam nervosos e cuidar daqueles que passavam mal – no período, devido as condições do avião era muito comum que os passageiros se sentissem enjoados durante o voo.
Em 1928, na tentativa de melhorar a situação, uma companhia aérea alemã colocou um terceiro funcionário no avião, que liberaria o copiloto para suas funções mais importantes. Pouco tempo depois, outras companhias começaram a fazer o mesmo, dentre elas, a Boeing Airtransport.
Nesse capítulo da história, entra Ellen Church, uma enfermeira que sempre sonhou em voar mas sabia que isso era impossível para as mulheres de sua época. Um dia, ao sair do trabalho, ela decidiu perguntar na Boeing se havia alguma vaga de emprego disponível e foi informada de que eles contrariam um funcionário para prestar assistência aos passageiros dentro do avião.
Ellen enfrentou um longo caminho para convencer os donos da empresa a colocar enfermeiras nesse posto e conseguiu um programa de testes para sete delas durante três meses. Achar moças dispostas a topar a aventura não foi nada fácil: havia restrições de peso, altura e idade além do impedimento da família, que era muito comum. Apesar das dificuldades, Ellen conseguiu e a aposta foi um sucesso: as enfermeiras sabiam cuidar melhor dos passageiros enjoados e garantiam a segurança dos passageiros no ar (a porta da saída de emergência ficava bem próxima a do banheiro). As funções dessas moças não paravam por ai: elas ainda serviam os passageiros, apertavam parafusos soltos nos assentos e limpavam a aeronave. Além disso, a presença de mulheres (consideradas frágeis na época) voando todos os dias ajudou a construir uma imagem mais segura para os temidos aviões.
Mesmo com o sucesso, o trabalho de Ellen na aviação comercial não durou muito: em pouco tempo, estourava a 2ª Guerra Mundial e a maioria das enfermeiras foi deslocada para regiões de batalha e assistência nos hospitais. A saída de Ellen da aviação para atuar no conflito e sua experiência em aeronaves fez com que ela se tornasse uma heroína de guerra, ajudando a evacuar soldados e enfermeiras, além de treinar algumas para atuação no Dia-D.
Uma nova fase para as Comissárias de Bordo
Como a guerra não deixou muitas enfermeiras disponíveis, as companhias aéreas começaram a contratar mulheres com diploma de nível superior para atuar nas aeronaves.
A partir dos anos 50, a aviação se torna muito mais segura e confortável com os jatos comerciais e voar passa a ser um luxuoso e exclusivo privilégio. A rotina nas aeronaves era composta da presença de cardápios dos melhores restaurantes do mundo, caviar, champagne, tábua de queijos, pianos de cauda e coquetéis. Nesse novo cenário, o papel das comissárias de bordo passou a ser bem parecido com o das hostess de festas. Bonitas, comunicativas, eficientes: as aeromoças precisavam representar a empresa e agradar os passageiros.
Tudo isso começou a criar uma aura de glamour em torno da profissão e torná-la concorridíssima: são registrados casos em que mil meninas estavam tentando uma vaga. Conseguí-la era garantia de status: ser comissária de bordo só ficava atrás no prestígio em relação as profissões de modelo e atriz de cinema. Emprego ainda mais tentador se levarmos em conta que, para as mulheres do período, não havia muito mais opções disponíveis de carreira além de secretária, vendedora de loja e professora.
Sem dúvida havia muitas vantagens: trabalhar no ar era sinônimo de estar cercada de ricos e famosos, conhecer o mundo, ter independência e ser um ícone de beleza e glamour. Em contrapartida, todo esse universo gerava um grande assédio masculino em relação a essas mulheres, exacerbado por algumas companhias aéreas, que chegaram ao extremo de fazer uniformes de papel que rasgavam facilmente durante o voo.
A partir dos anos 60, os publicitários da Madison Avenue começam a perceber o poder de venda do apelo sexual e utilizá-lo na imagem fetichizada da comissária de bordo. Uma companhia aérea do período, a texana Braniff, foi uma das que mais explorou essa sexualização. Foi feito até mesmo um comercial para TV, o Air Strip, que anunciava um novo uniforme das comissárias através de uma espécie de strip tease (confira o vídeo abaixo). No final dos anos 70, a situação começou a mudar e ser comissária de bordo já possuia um valor bem diferente: resquícios dos tempos de ouro ainda existiam mas o cenário nas aeronaves era outro, bem menos luxuoso.
E hoje?
Com a volta da importância de questões primordiais relacionadas a segurança nos voos, o papel inicial das comissárias volta um pouco àquele iniciado por Ellen Church, apesar de muitas vezes não ser reconhecido nesse aspecto. A aura de glamour e fetichização em torno da profissão diminuiu muito mas ficou fixada no imaginário das pessoas até os dias de hoje. Prova disso é que revistas masculinas ainda fazem ensaios usando o esteriótipo da aeromoça (e também ex-aeromoças). Infelizmente, as vezes isso se reflete em problemas para as comissárias: a Cathay Pacific, a pedido de suas funcionárias, alterou o uniforme da companhia, tornando a blusa mais larga e a saia menos apertada. Segundo um estudo, 27% da tripulação dessa companhia de Hong Kong já havia sofrido com algum tipo de assédio sexual em voos e, segundo as funcionárias, as roupas ajudavam a intensificar o problema.
Um tipo de situação que, em pleno século XXI, não deveria acontecer. Por outro lado, páginas como por exemplo o Aerolindas mostram que talvez seja possível equilibrar o imaginário da beleza das aeromoças com um grande respeito ao valor dessa profissão, essencial para garantir o conforto e a segurança dos passageiros a bordo.
Em entrevista concedida à Fola de S. Paulo, Leticia Reis, criadora do Aerolindas, afirma que página nasceu pela admiração ao trabalho dos tripulantes e que não precisa ser linda para estar na página. Antes, Leticia pedia permissão para postar as fotos mas, hoje, são as próprias comissárias que as enviam – e algumas imagens vão bem além de selfies. Muitas dos posts retratam o amor das aeromoças por sua profissão. Talvez seja o sinal de uma feliz mudança nos tempos, ainda que ela tenha muito o que percorrer. O Aerolindas, se visto sem preconceitos, pode ser um pequeno passo num mundo onde as mulheres tem um pouco mais de espaço para mostrar, sem medo, que beleza, competência e amor pela profissão podem (e devem) andar juntos.
Por Júlia Cerchiaro