Após o fechamento do espaço aéreo ucraniano, a Malaysia Airlines anunciou que desviará a rota Kuala Lumpur- Londres para a região da Síria. A decisão parece pouco prudente, já que a Síria enfrenta das piores guerras civis da atualidade – situação que se tornou ainda mais estranha quando o site de monitoramento aéreo Flightradar24 afirmou que a antiga rota passava pelo território turco, e não pela Síria.
Em resposta, a Malaysia Airlines afirmou que a Autoridade de Aviação Civil da Síria liberou a rota e que ela estava de acordo com as delimitações da Organização da Aviação Civil Internacional, órgão filiado à ONU.
Essa estranha opção pela Síria e o recente acidente com o avião da Malásia suscita discussões sobre o poder do Estado na definição das rotas das companhias aéreas. Os países tem controle sobre seus próprios espaços aéreos e podem definir zonas de perigo, exclusão ou restrição, com base na análise de risco. Isso ocorreu, por exemplo, em Kiev, após o abatimento do voo MH17 da Malaysia Airlines: desde então, as autoridades fecharam o espaço aéreo de Donestk, Lugansk e parte da Cracóvia.Tarde demais: a decisão foi tomada apenas após o incidente, que matou 298 civis.
O incidente foi, sem dúvida, um crime de guerra, cometido provavelmente por rebeldes pró Rússia e possibilitado pelo forte poder de armamento fornecido à eles e pela desorganização dos militantes enquanto exército.
Uma tragédia aparentemente pontual mas que respinga em questões geopolíticas pelo mundo todo. Apesar da indiscutível culpa daqueles que lançaram o míssil em direção a uma aeronave civil, provavelmente por um grande erro, há ainda outros responsáveis pelo incidente e muitas outras questões que estão sendo deixadas em segunda plano apesar de sua extrema relevância para o futuro da aviação civil.
Era de conhecimento público que, últimos meses, diversos aviões militares estavam sendo abatidos na Ucrânia e que a região vivia um conflito armado com a Rússia – inclusive já havia sido delimitada a proibição de voar abaixo de 22 mil pés na área afetada. Medida que o MH17 cumpriu: quando foi atingido pelo míssil, a aeronave voava a uma altura de 23 mil pés. Entretanto, o espaço aéreo em si não havia sido fechado e, na semana do desastre, diversas outras companhias efetuavam voos que passavam pelo local onde o MH17 foi atingido: segundo dados do Flightradar, companhias aéreas como Jet Airways, Pakistan Airways, Air India, Thai Airways, Belavia, Lufthansa, Ukraine Airlines, Singapore Airlines e Aeroloft empreenderam mais de 30 voos sob a área afetada nesse período.
Por ironia do destino, a Malaysia Airlines foi atingida, pouco mais de 5 meses após outro memorável desastre com uma aeronave da companhia. Apesar do infortúnio, a verdade é que o avião abatido poderia pertencer a qualquer outra empresa. Mas, por que, cientes do risco, essas companhias continuavam efetuando uma rota tão perigosa?
Um fator que pode explicar a decisão é o preço: o desvio acarretaria em maiores gastos com combustíveis, o que acabaria por se refletir na passagem aérea, já que 40% do valor dela depende desse gasto de locomoção. Um argumento provável, já que, desde abril, a Eurocontrol, que controla o espaço aéreo europeu, emitiu uma recomendação alertando sobre “sérios riscos” e sugerindo rotas alternativas para as companhias aéreas. Entretanto, a Eurocontrol não tem poder restritivo e as empresas poderiam escolher se seguiriam ou não as orientações. No mesmo mês, a Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos (FAA) , agência que regula o espaço aéreo do país, proibiu diretamente as empresas americanas de efetuarem voos nessa região da Ucrânia. Diferentemente da Eurocontrol, esse órgão possui regulador em questões emergenciais. Isso suscita um grande debate sobre a tênue linha entre seguraça e legalidade. O quanto é válido que países interfiram em prol da segurança aérea? E quão longe isso pode chegar?
Os EUA tem políticas bem rígidas em relação a segurança, que chegam a beirar a ilegalidade, como o Patriotic Act, assinado como medida de emergência de combate ao terrorismo no governo Bush, que permanece em vigência até hoje. Entretanto, esse funcionamento regulatório evitou que fosse uma aeronave americana a ser abatida na Ucrânia. Mas, ao meu ver, as melhores soluções, não residem em proibições arbitrárias mas no bom senso: item essencial que faltou às companhias aéreas que sobrevoavam uma área de risco e que resultou na morte de 298 civis. Item, que me parece estar sendo colocado em segundo plano novamente, quando a Malaysia Airlines decide mudar a rota para a região da Síria.
Dark Tourism: outro lado da moeda
Nos EUA, além do FAA, a CIA e o Departamento de Defesa dos EUA emitem avisos de caráter recomendativo: há dois tipos de alertas, o Travel Warning, que se refere à regiões que estão em conflito prolongado há anos, como o Iraque, e os Travel Alerts, que diz respeito à acontecimentos de curta duração como ataques terroristas, catástrofes naturais e conflitos como o da Ucrânia.
Só em 2014, foram emitidos 37 alertas: o país não recomenda visitas á Honduras, Iraque, Rússia, Coréia do Norte, Síria, dentre outros. Nesse cenário, um movimento contrário ganha cada vez mais força: é o chamado “Dark Tourism”, onde o passeio consiste justamente em visitar áreas de conflito para assistir ao espetáculo da guerra.
Por incrível que pareça, o turismo de guerra não é algo novo: desde a batalha de Waterloo espectadores seguem exércitos para conferir, de longe, as batalhas. O que impressiona, no cenário atual, é a comercialização desse tipo de turismo: a área do turismo de aventura, que inclui o dark tourism, cresceu cerca de 65% e vale 263 bilhões de dólares. Essa valorização tem gerado crescente interesse pelo assunto: o Dark Tourism Institute, parte de uma universidade britânica, por exemplo, foi fundando em 2012 só para estudar o setor.
Crescem as agências com tours inusitados, que levam até as montanhas do Paquistão, a Faixa de Gaza, a Líbia pós guerra e até mesmo a Coréia do Norte. Alguns acreditam que os dark tourism é uma maneira de sobrevivência das agências de turismo, um tipo de diferenciação, já que hoje é muito fácil viajar sozinho para lugares convencionais.
Os tours não são baratos mas tem contado com cada vez mais adeptos, dos mais diversos tipos: há sim os que vão pela violência e adrenalina envolvida mas, grande parte dos turistas quer apenas entender o mundo que os cerca, sem superficialidades e histórias contadas por terceiros.
Apesar das questões éticas envolvidas nesse tipo de visita e de seu aparente caráter macabro há um importante fator de conscientização, que algumas agências tem enfocado em maior medida, como a Political Tours, empresa que leva a destinos como Bósnia, Sérvia e Líbia – que inclui no tour uma conversa com militantes e moradores da região. Considerando essa disposição para entender o desconhecido, o dark tourism pode ser, para aqueles que se dispõe a ir além das aparências, um importante passo na construção de um mundo mais tolerante, onde se entenda plenamente como uma guerra afeta o local em que ocorre e seu legado de pequenas tragédias. Sem dúvida, há questões éticas envolvidas na exploração comercial do turismo de guerra mas também deve se pensar que, muitas vezes, quebrar paradigmas e afrouxar o isolamento de países como a Coréia do Norte, por exemplo, pode ser algo positivo não só para o turista mas também para a população do país visitado.
Nota: as informações deste último trecho foram escritas com base em uma reportagem do The Atlantic sobre o “Dark Tourism” que merece ser conferida: www.theatlantic.com/international/archive/2014/07/the-rise-of-dark-tourism/374432/
Por Júlia Cerchiaro